por Marcel de Souza
Romário de Souza Faria e a ginástica de valores: Confesso a vocês que essa é uma tática de trincheira, um blitzkrieg, um bater e fugir.
Aprendi quase que por tentativa e erro ao escrever um artigo sobre o nosso grande Ubiratan Pereira Maciel quando da doença que o levou de nosso meio.
É claro que poderia colocar o link daquela época, no famoso “aqui, aqui e aqui”, mas como não domino esse negócio (tenho curso de datilografia, vejam só), se vocês quiserem lê-la é só colocar na janela de pesquisa o nome completo do nosso maior pivô.
Na época, o Databasket estava começando e não tinha a audiência de hoje, mas com o editorial sobre o Ubiratan e o infortúnio que o acometeu levando-o precocemente a se encontrar com o criador, os hits aumentaram exponencialmente e a única explicação foi a retranca do editorial.
Então, sempre que queremos um pouco de destaque ou uma audiência mais abrangente do que a dos nossos fiéis leitores, recorremos ao artifício de colocar o nome completo do responsável pelo assunto a ser discutido.
Assim, toda a vez que alguém colocar nos sites de busca o nome Romário de Souza Faria irá forçosamente encontrar esse texto.
Faço isso porque o assunto foi gerado pelo relatório feito para uma comissão do senado pelo nosso campeão, que permite a um ex-atleta assumir a posição de técnico desportivo e consequentemente provoca muitas controvérsias opinativas no meio esportivo.
Tal relatório do Romário contém uma emenda ao projeto original do também senador Alfredo Nascimento do nobre Estado do Amazonas, que discorre sobre “as relações profissionais do técnico ou treinador profissional de modalidade esportiva coletiva” e reza que alguém com 5 anos de atividade profissional na área possa atuar como treinador.
Bom, esse é preâmbulo para justificar o termo “Ginástica de Valores” que, é claro, não foi criado por mim, mas por Luiz Philippe Westin Cabral de Vasconcelos (coloquem no Google prá ver o que acontece).
O Doutor Felipe, como é conhecido aqui em Jundiaí, basicamente foi meu vizinho por muitos anos (ele ainda mora no mesmo endereço, eu é que me mudei).
Ortopedista de mão cheia, operou os meniscos de meu pai e sempre foi referência quando acontecia alguma lesão músculo-esquelética com o pessoal lá de casa (a Loira, o Maury e eu).
Bastava atravessar a rua e bater à sua porta para ser muito bem atendido.
Essa, digamos é a vida normal do Doutor Felipe, mas ele também foi um dos meus professores na Faculdade de Medicina de Jundiaí (e tudo isso gera hits no google) é Doutor em Medicina pela Universidade Federal de São Paulo (onde foi colega do grande Luís Cláudio Menon, de quem herdei a camisa 11, aliás foi busca-lo no aeroporto quando o Menon quase perdeu a vista no Pan de 71) e não para por aí, porque o melhor lado do nosso querido Luiz Philippe é ser um humanista de primeira.
Na sua graduação pela Escola Paulista de Medicina (antigo nome da atual Universidade Federal de São Paulo) ele se tornou um indianista, pois a Escola (como era chamada) fez um convênio com então Presidente JK e levava seus alunos para a floresta amazônica onde estes além de exercerem a prática médica aprendiam sobre a cultura e a civilização indígena.
O então imberbe Luiz Philippe, em suas incursões ao Alto Xingú, fez amizade com os irmãos Villas Boas (imaginem a transferência de conhecimento) e assimilou muita coisa sobre os nossos indígenas. E como é que eu vou juntar o nobre senador Romário (boleiro impagável), o humanista e indianista Professor Doutor Luiz Philippe e o termo, por ele criado, a ginástica de valores?
Naturalmente num jantar de médicos, onde o Professor Doutor começou a discorrer sobre a cultura indígena afirmando que para entendê-la era preciso ter o que ele chamava de “Ginástica de Valores”.
Na verdade a gente estava falando sobre a situação atual do nosso país e o quão estranha ela é para quem tem pelo menos três empregos e trabalha mais de dez horas por dia como nós médicos (mas isso não é assunto para o Databasket) e ele entrou com o tal termo relatando as suas idas e vindas à selva amazônica onde também aprendeu sobre a cultura indígena.
Duas histórias me deixaram pensativo: a primeira, mais radical, é a que quando um índio mais velho fica demente, alguém arranja uma desculpa que os males da tribo são culpa do velho e o aniquila a golpes de borduna.
A segunda é que quando nascem gêmeos estes representam o bem e o mal e como eles não sabem quem é um e quem é outro também eliminam os dois.
E a terceira (é claro que eu sei que eu falei de duas, mas me lembrei dessa também) é que quando ele tratava de um ferimento em um indígena e tinha que trocar suas bandagens, esse pegava todas as bandagens antigas (sujas de sangue) e as queimava e enterrava para que seus inimigos não as pegassem e as utilizassem contra ele num feitiço.
Imaginem o choque cultural para um jovem estudante de medicina da época.
Afirmava, então o nosso querido Philippe, que ali era preciso ter uma ginástica de valores para aceitar aquilo como pertinente à cultura milenar de um povo e interferir o menos possível.
Explicada a Ginástica de Valores eu convido todos os meus leitores que acompanhem o meu raciocínio sobre a justificativa do senador Romário sobre a autorização de ex-jogadores para atuarem como técnicos aprovar a qual destaco abaixo:
Afirma o senador em seu site oficial:
“Além disso, são normais úteis para a melhoria do treinamento e desempenho dos nossos atletas, já que traz a experiência e expertise de quem já atuou na área para o treinamento”
Não sei se foi erro de digitação, mas não entendi a palavra “normais” no contexto da frase. (deve ser “normas”).
De qualquer maneira, inicio aqui a minha ginástica de valores.
Eu parei de jogar numa sexta-feira num jogo entre Santa Cruz do Sul e Palmeiras no início de 1994.
Foram 26 anos de carreira, vinte dos quais na seleção brasileira.
No domingo subsequente me reuni com o pessoal de Guarulhos e José Cláudio dos Reis (nosso maior dirigente) na Fogo de Chão da Rubem Berta e praticamente acertei minha contratação naquela equipe.
Não era formado em Educação Física e nem isso era exigido para a profissão. Fui para o primeiro jogo com “calma dos ignorantes”, pois não sabia se iriam me aceitar como técnico ou se precisaria mostra algum documento, sei lá.
Só me lembro que nada me pediram, assinei a súmula e “pau na máquina”.
Guarulhos começou muito bem. Ganhamos os primeiros cinco jogos e tudo ia conforme o figurino.
Eu fazia as jogadas, treinava fundamentos, arremessos, etc. Tinha preparador físico (Roney de Oliveira), auxiliar técnico (Haroldo Evans), tudo bunitinho.
Até que, no sexto jogo, contra Limeira do técnico Carioquinha, perdemos na última bola da prorrogação (cesta do Zanon).
A partir daí foi uma montanha russa, um mais perde do que ganha.
Algo tinha acontecido e desesperado com os resultados passei a demonstrar como os jogadores deveriam fazer e percebi que me olhavam de forma estranha.
Um dos líderes do time, o alapivo Mauro Gomes, chegou-se até a mim e me disse: “Olha Marcel, isso é você quem fazia…”
Entendi então que tudo o que eu sabia “dentro da quadra” valia muito pouco ou quase nada fora da quadra.
Jogador não dirige, ele simplesmente joga.
Claro que saber basquete, discutir basquete, jogar basquete é muito fácil para quem tem a expertise que fala o senador e muitos problemas do treinador a gente resolve na quadra como jogador.
Mas, ensinar o jogo, decidir antes que as coisas aconteçam, além de unir o time em torno a um objetivo requer outras habilidades que não as utilizadas dentro do jogo.
É por isso que temos alguns treinadores que nunca ou pouco jogaram e são excelentes.
Aprendi muito mais sobre a arte de ser um treinador com aquelas palavras do Mauro Gomes do que nos meus anos como jogador.
Então, já que demonstrar não era uma opção, passei a estudar não só o jogo, mas também formas de fazer com que meus jogadores se tornassem os melhores jogadores que eles, nas suas capacidades pudessem ser, ao invés de transformá-los em réplicas minhas.
Fiz cursos na Itália, estudei o que pude, vi e li o que tinha a minha disposição (a internet não era como hoje)
Veio a exigência do CREF e me indignei (como muitos) de ter que fazer um curso para praticar uma coisa que já sabia, mas logo na primeira aula vi que não sabia muito.
Sabia do meu jogo, si. Mas não do esporte, da preparação, dos fatores que alteram o desempenho, da relação com o ambiente…
Enfim, foi e continua sendo um processo longo e que exige uma constante ginástica de valores a medida que o jogo avança e as pessoas mudam.
De qualquer maneira, é tudo uma questão de política e de mercado.
Nem sempre o mais qualificado tem chances, não importando se tem expertise suficiente para aquele nível.
Com ou sem CREF, na grande maioria dos casos, não será a capacidade técnica do treinador que será fundamental para que ele encontre uma equipe, mas sim sua capacidade política e principalmente social que determinará se ele terá espaço ou não.
E, aprendendo com o Professor Doutor Luiz Philippe Westin Cabral de Vasconcelos, teremos que fazer uma grande Ginástica de Valores para entender que, quanto maior o nível do jogo, mais a capacidade política e social de um treinador determinará o seu sucesso em encontrar uma equipe para treinar.